quinta-feira, 28 de junho de 2001

Por um gole de café.
(Márcio Calixto)

Era a vez dele dizer as suas falas, sem ao menos titubear em seus pensamentos, seu copo baila conforme sua racionalidade e a voracidade de suas filosofias. Seu Carlos é um daqueles homens que param tudo para conversar uns dedos de prosa amiga com qualquer um que esteja a sua volta. Numa elegância excêntrica para o lugar onde se encontra, sua barba branca e seus cabelos ralos escondem a simpatia que adorna aquele belo copo enegrecido pelo seu conteúdo forte e opaco.“Por favor, Alessandra, completa?”, mostrando o seu tanque vazio e sem combustível para a próxima amostra de palavras.
Seu cotovelo, sua sentença. O osso avermelha a pele branca e dobrada das intempéries da vida. Sempre apoiado à balconeta de um mármore-plástico, ele embebeda a garganta com a forte quentura de seu líquido preferido. Fosse a força que enforca o tempo de vida, bebida líquida, um gole amigo. Em seu semblante, o prazer de mais um trago gostoso. Seus olhos namoram mais uma vez o copo enquanto a língua recupera-se do golpe da saliva. Sua alma ri e Seu Carlos fecha os olhos, um gole a mais.
Era tempo de bicar um cascudinho, abrir a boca e deixar a saliva adornar o biscoito de polvilho que sempre fica na bandeja prateada para os clientes. “Seu Carlos, deixa biscoito para os outros clientes”, diz Alessandra, a atendente do Mercado que abriu a pouco mais de um ano aqui perto de casa.
Eu sou uma dessas pessoas que logo que entram no Mercado, correm para a direção do torpor do café. Aquela Medusa sem cobras capilares e que hipnotiza com murros de odores que esquentam a pele e arrepiam os cabelos do braço é o cheiro que sinto de longe, da máquina que mói o café. Seus grãos cintilantes pela enegrecida cor marrom e o som foraz que a máquina berra ao mastigar os grãos que tritura. Como deve ser bom berrar assim. Sentir aquele grão ceder a força de seus dentes e sua seiva entorpecer a boca com a polpa de suas entranhas. Não é bom nem pensar. Pisco os olhos e vejo a água incandescente ser posta na máquina que mantém a água quente. Sua cor metálica de ferro nobre e de brilho fino resvala o calor do acalento da fumaça que queima o gosto ainda não sentido. Meus olhos fixados ao Sol não-amarelo imaginam a formação do divino líquido que formar-se-á nas entranhas da Máquina que mantém a água quente. Vejo o pó. Algumas colheres de pó de café são postos na Máquina que mantém a água quente. Colher de pau. A atendente rebola a colher de pau no interior da Máquina. Fecha a tampa. Ela tira a mão da tampa e descansa a colher de pau. A colher de pau está enegrecida. A água está enegrecida. A água virou café. Petrifico. Fico parado no mesmo lugar sem ao menos tirar aquele sorriso besta do canto da boca. Como o milagre da transformação, vejo vários copinhos serem preenchidos com o líquido que antes era água e pó disformes e sem vida. A fumaça quente torna-se uma só com o oxigênio que respiro e num golpe de mágica cotidiana, desperto para mais um copo de café. Estendo as mãos, depois de Ter cedido a vez para duas senhoras menos bobas do que eu, pelo entretenimento na conversa sobre o programa de culinária, fecho os olhos para concentrar-me no gosto, tamanho é o baque que se toma ao primeiro gole de café e deixo-o acariciar a goela inundada pelo que se esperava desesperadamente. Como é bom vir fazer compras. Titubeio em resvalar o som do prazer que é tomar um café como este, por causa da minha educação ríspida, e vejo aquele copo de café esperar por mim ansiosamente. - Acalme-se! - . As pessoas passam a meu lado e nem percebo suas existências.
“E aí, como vai?”, fala-me Seu Carlos. Nem o tinha visto, mas sabia que o ia encontrar aqui. Ele sempre o está. Sempre em sua calma eterna e sua feição de um profundo conhecedor da vida. Retribuo-lhe a fala. “ Há um bom tempo que não te vejo aqui, garoto?”, respondo com um verbo ser alongado e acompanhado de um triste olhar para longe do copo. “Trabalho?”, só concordo. “Lembro-me bem dá época de exército, empunhar arma e atirar ao relento, enquanto as aves cantavam contra os estampidos dos fuzis de guerra, meu filho. Sabe? Não há nada pior do que atirar. Deixar que uma peça de metal siga sem pudor um caminho reto sem perdão. A vida é feita disso, para se conseguir alguns troféus, temos que perder outros. Não sei se você está me entendendo?”, dou-lhe a resposta de um soldado. “Alessandra, põe mais biscoitinhos aqui.” ,ela o faz, “mas que bico é esse menina? Parece que comeu e não gostou?”. Ele retorna o papo, “às vezes, devemos seguir reto para conseguir alcançar nossos objetivos, mesmo que tenhamos que ser frios e não termos perdão com quem passa na nossa frente”, prefiro não discordar pois latida de cachorro velho é um latido sem razão, um latido cansado, latido somente por latir. O bico de Alessandra é um bico que concorda com o meu olhar. Pego outro copinho de café. “Não sei se você concorda comigo meu garoto, mas não tem nada melhor do que um gole de café. Sempre que posso, eu venho aqui” , eu que o diga, “esse café gostoso que essa menina aqui teima em não me passar a receita. Cá entre nós, sabe o que eu acho? Acho que ela gosta de mim e não está querendo que eu vá embora, pois ela sabe que se eu soubesse a receita desse cafezinho esperto, eu faria ele todo santo dia lá em casa”, Alessandra acompanha a minha risada, mas o tom alto da sua risada tinha um outro significado, diferente ao meu. “Ué? Por que você está rindo assim? Até aquela tua amiga morena que aparece aqui me disse isso. Você é que está escondendo o jogo”.
Pausa para o café.
Seu Carlos pega mais um copo e o segura firme. Sinto que o conheço a mais tempo que eu a mim mesmo. Sua pele contorcida alonga-se ao se esticar para pegar o copo, seus olhos, que na prosa era o de uma pessoa madura, rejuvenescem ao piscarem em direção ao líquido quente, como se fosse uma criança que experimenta o primeiro doce. “Sabe, meu garoto? A maior invenção da humanidade é o café. Independente de estar no inverno ou no verão, ele é sempre bem vindo”, Seu Carlos beija o copo fechando os olhos, como um amante apaixonado. “Conselho de amigo, meu rapaz. Sempre que tomar um gole de café, feche os olhos para que a pancada do bom café não queime a ponta de sua língua e para que não te deixe nocauteado também”, ele ri em minha direção, que me fez lembrar a risada de meu velho avô, morto ano passado, ex-combatente do exército, que serviu à pátria como enfermeiro e morreu de uma enfermidade que ele desconhecia: a velhice. Concordo com Seu Carlos, eu também fecho os olhos para o primeiro gole de café. Deixo o meu copinho na lixeira e sigo meu caminho. Despeço-me dele e de Alessandra
A responsabilidade me chama Tenho que ajudar a minha mãe a terminar com as compras, que mais parecem feitas para um batalhão inteiro. E não o são? É tanta gente lá em casa que tenho que concordar: é um batalhão. Lembro da conversa que tive com Seu Carlos. Época de guerra não é, Seu Carlos? Ainda estamos nela. Caminhando apoiado no carrinho de compras penso nas aves que voam contra o estampido do tiro dos fuzis da guerra. Sabe o que é Seu Carlos? Talvez as aves não estivessem voando contra o estampido, mas ganhando os ares que suas asas permitem, pois um dia elas tem que voar. Possivelmente essa era uma resposta que Seu Carlos não gostasse de escutar. Ou não? Talvez. Quem sabe? Isso é papo para o próximo gole de café. Olho para trás, em direção ao balcão e não o vejo. Os copinhos se acumulam sobre a bandeja de prata no balcão de mármore-plástico. Alessandra se move dentro do pequeno balcão com uma agilidade de anos de prática, enchendo os copinhos e os pondo em cima da bandeja. Sua feição entristecida não é a de uma pessoa que acabara de conversar com um senhor que adora o cafezinho que ela serve. Na verdade, ela trabalha como se ele nunca estivera ali.

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