domingo, 30 de março de 2003

Fantástico

Puta texto, realmente foda!

Longa vida à egüinha Pocotó

Antonio Fernando Beraldo (*)

Recordo, para começar, a frase imortal do filósofo pragmático-existencialista Gugu Liberato – "Eu não inventei Carla Peres!". Na época, o apresentador se defendia de acusações de promover ad nauseam, nas mornas tardes de domingo, para entretenimento da família brasileira, o requebro atlético-erótico da então loura titular do grupo lúdico-softpornô É o Tchan!, e o acoplado merchandáizingue de sandálias, botinhas, blusinhas e quetais, para um público-alvo de menininhas que, precocemente erotizadas (na aparência) pela Xuxa e congêneres, achava que a "dança da garrafa" era uma espécie de malabarismo de circo.

Belo sofisma, e traiçoeira falácia do herdeiro de SS! E se, naquele tempo, andava em alta a discussão sobre a baixaria televisiva, com frases do tipo "onde é que vamos parar?", atualmente alguns poucos olhares estão abismados com "o ponto a que chegamos" – enquanto outros, muito outros, mal conseguem esperar "o que vem por aí" (quem sabe alguma "canção" sobre coprofagia?). Estes "outros, muitos outros", são o público consumidor, não de música, no significado a que nos habituamos (melodia+ritmo+harmonia), mas de um troço que pode ser chamado, talvez, de "produto". Algo "produzido", independente de ter qualidade ou não (isto é o que não interessa), mas fácil de ser divulgado em massa para ser "consumido" (vendido), até o bagaço – ou até aparecer outro "produto", o que inevitavelmente acontece.

Não estou falando nenhuma novidade, mas acho que maioria das pessoas com um pouco mais de sensibilidade está confundindo as coisas. Isto que toca no rádio umas 200 vezes por dia não é música, não. É o produto e, simultaneamente, a propaganda do produto (daí a repetição, é claro).

Manos e minas

Em termos de música, e não de produto, o país não vai lá muito bem das pernas, infelizmente – e talvez por isso mesmo. Dos medalhões, temos aí um Caetano em suave decadência, um Gil numa efervescência sem peso, um Milton num clímax tão maravilhoso quanto desconhecido, sem lugar na mídia. Chico Buarque e Paulinho da Viola compõem cada vez mais raras pérolas homeopáticas, o resto vai e volta (às vezes não volta) dos EUA.

O samba "agoniza mas não morre", como faz há décadas. E os tais modernosos, como os Tribalistas (cruzes!), neste "barulhinho bom" do "Já sei namorar", cometem um ligeiro plágio clamoroso, sei lá se inconsciente ou proposital (hoje plágio chama-se samplear) do "Family Affair", música do Sly and the Family Stone, lá dos anos 60-70. Vão acabar sendo processados.

Criatividade bruta, mesmo, só a do rap dos mano e das mina, mas não é possível abrir uma cerveja e relaxar ouvindo um rap prazerosamente, além do ritmo ser uma monotonia entediante (lembrar que rap quer dizer rythm and poetry). Um deserto, pois.

Fundo do mar

Este estado de coisas teve origem quando as grandes gravadoras começaram a sentir a retração do mercado consumidor, na crise econômica da década de 80. A venda de CD’s caiu pela metade, e hoje, menos ainda. Até o Roberto Carlos não conseguiu vender o seu milhão de CD’s, ano passado. Complicando ainda mais, veio o maremoto dos CD’s piratas a 3 reais, e as safras irregulares de CD’s independentes: qualquer um, com uns quilos de sonho e ousadia no coração, mais umas 10 pilas no bolso, aluga um estúdio, grava o seu CD e vende à vontade.

Ah, e tem também os dáunlôudis da internet, via MP3, que, se você tiver paciência e um CD-RW, consegue baixar até o "Sermão da Montanha", na voz do Autor, comentado pelo Cid Moreira. E sem contar o nicho cativo da turminha da música gospel, com cantoras na melhor tradição americana e bandas com nomes bíblicos feito "Tabernáculo", "Judite e os Jeremias", ou "Pilares de Javé" – uma fatia de mercado que escapou (escapou?) às garras das múltis.

Na hora do desespero, o filão passou a ser, para um segmento específico, a tal música "sertaneja", uma espécie de híbrido entre o que se chamava de "música de zona" (anos 50-60) e a gritaria desenfreada das vozes em terças com acompanhamento de guitarras e metais apoteóticos, melodias simples e escancaradamente trágico-românticas (com grossas pitadas do pior da Jovem Guarda). E foi aquela chuva de lacrimejantes Xitãozinhos e Xororós, Bitãozinhos e Bororós, Gleidison e Neldison, Giancarlo e Carlojean, Waltenclever e Wiltonclever (porque não Dimenstein e Wittgenstein?)... Todos os neo-sertanejos gravaram o primeiro CD em estúdio, e os restantes 435 "ao vivo" – economia de estúdio e de escala, já que venderam um trucentulhão de discos (é que dizem).

Para outro segmento, que acha isso tudo "brega", convenientemente importamos o lixo produzido pelos nossos irmãozinhos do norte, dos dois lados do Atlântico. Com a vantagem de ter seu custo de produção previamente quitado, as múltis nos fazem aturar coisas do calibre de Celine Dion e Mariah Carey, e mais outras que parecem estar surtando no banheiro do hospício – uma espécie de competição de quem consegue gritar mais alto.

E tem que ter também uma latina de plantão, feito Shakira (?), ou, para não deixar o pop envelhecer, alguma teen feito Britney Spears, ai, meu Deus! Mas o pior de tudo é a música new age, que só tem meio, não tendo começo nem fim. Perfeita para curar elevadores insones, não deve ser ouvida, mas deve ser assistida na TV, com aquelas paisagens do fundo do mar, peixinho prá lá e prá cá, o mundo maravilhoso da natureza, por aí.

Ladeira abaixo

Um terceiro segmento foi atendido com uns trecos meio claustrofóbicos, meio góticos, chamados, indiferentemente, de bass-and-drums, techno, house, car, pencil, this-is-not-an-elephant, ou coisa que o valha, em que funciona assim: uma boate (hoje se diz club), com uma pista de dança onde cabem meia dúzia de pessoas imóveis; provavelmente surdas, ou quase, 18 caixas de som com uma potência equivalente à bomba de Hiroshima e um som parecido com o ato sexual entre um bate-estacas capenga e uma moto-serra desregulada. Ou, então, uma festa ao ar livre (hoje se diz rave) com 5 mil pessoas em êxtase (sem trocadilho), maravilhadas diante de um DJ (pronuncia-se "dhi-jei"), um(a) sujeito(a) com uma cara de ex-voto jamaicano e dois toca-discos (hoje se diz "picápe") que misturam (hoje se diz mix) Frank Sinatra com aspirador de pó e um genial conjunto (hoje se diz "banda") nipo-guatemalteco ou esquimó-cingalês chamado "Brwehnghayullowitneiz". Não deu muito dinheiro, mas tem gente hype que paga em dólares o CD pirata do famoso DJ Pyrolyt, the Man, cool, man!.

Mais moderninho do que isso, outra turminha se encanta com conjuntos (ou bandas) inglesas de rock (rock?) que acontecem – e fenecem (perdão, senhoras) – de dois em dois dias, e residem no caderno "Ilustrada" da Folha de S.Paulo. Seus componentes estão sempre de mau humor nas fotos de divulgação, e ficam mais irritados ainda se alguém diz que "seu" som é parecido com o som de outra banda (sim, cada banda tem o "seu" som, mas pouca gente percebe a diferença). Os entendidos, ou blefadores, vivem a comentar coisas como o cantor tal (hoje se diz vocalista) da banda tal está perdendo o pique, porque no show tal, além de ter cantado duas músicas dentro do tom, esqueceu-se de vomitar e desmaiar ao final da canção tal, e está gravando músicas de um cara que ninguém conhece, um tal de Bob Dylan – com esse nome, só pode ser um daqueles pastores evangélicos que aparecem na TV, ou então marca fantasia de rede de lojas fast-food.

Um quinto segmento, este numerosíssimo, é saciado com o tal do flash-back. Os títulos são sempre os mesmos: "O Melhor dos anos 60", "The Best of the 70’s", "Os Anos-Dourados, vol. 38", e por aí vai. São coletâneas (hoje se diz medley) de conjuntos "famosos" como Billy Roundell and the Roundells, Johnny and the Houndogs, e mesmo os manjados Mama’s and Papa’s, James Taylor, Bill Haley and his Comets (era isso, mesmo?) e The Supremes. Contém tudo aquilo que você estava bêbado(a) demais para entender ou ocupado(a) demais com a(o) garota(o) para prestar atenção, nos seus verdes anos, bicho! Vende que nem pipoca.

Elvis vende mais hoje do que na época que rebolava em Acapulco (pouca gente sabe, mas Elvis Presley está com 98 anos, e mora na parte reservada de Graceland, dentro de um Porsche 67 com cobertura de manteiga de amendoim). E, no meio disso tudo, ainda podemos nos enlevar com sessões tecno-espíritas, em que gente viva canta em dueto com gente morta, veja só, e fica até bonito: Unforgettable, com Nat King e Nathalie Cole, uma vez ao ano, é o que há! Outro dia, fiquei besta de ver o Paulo Ricardo, do quase-ressuscitado Rê-Pê-Mê, contracantar (existe isso?) com o também finado Renato Russo!

E há um sub-segmento, que poderia ser rotulado de "diante-do-que-está-aí-até-o-Kid Abelha-prestava": edições e reedições do retrocitado Renato Russo, Camisa de Vênus, Engenheiros do Havaí, Blitz e, ladeira abaixo, Renato e seus Blue Caps e os Pholhas – um dia ainda nos assombrará Lady Zu, mas aí já é covardia ... Há gosto para tudo nesta vida, mas cuidado: ouvir Ray Coniff antes do terceiro cuba-libre dá uma ressaca cósmico-oceânica que nem inalação de Antraz ou transplante de fígado dão jeito.

Luar tão cândido

Há outros públicos-alvo (nos dois sentidos), mas melhor parar aqui. Outro dia a gente comenta os pagodeiros, os axé-jóia, os rasta-reggae e os órfãos da Simone, mas fiquemos na egüinha Pocotó. Não sei por que reclamam tanto desta bobagem. É uma chatura, mas já tivemos coisa muito, mas muuuuuiiiiiiito pior a "ferir os nossos ouvidos" (obrigado, Noel). Alguém se lembra do Bonde do Tigrão? E do Claudinho e Bochecha? E do Tiririca? O próprio MC Serjinho (pronuncia-se "êm-sí"), autor da Pocotó, tem uma coisa pavorosa que a educação que mamãe me deu me impede de transcrever.

Então, o que fazer? (como diria Lênin). Não adianta sair do país e ir para o primeiro mundo: a música popular da França e da Itália, atualmente, é um tédio só. Junto com a Alemanha, eles ainda estão na década de 60 do século passado, e o único avanço é que as letras são mais, digamos, picantes. E é espantoso como eles conseguem misturar acordeão com guitarra e trumpete!

Nos EUA, está proibida qualquer música que não contenha as palavras "forever", "tomorrow", "friends", "future", "brother", "together" ou então aquela enxurrada de palavrões do Eminem, que tem até suas qualidades, mas é enjoado à beça. Madonna murchou, Michael Jackson ficou tão branco que sumiu de vez.

Então, por prudência, que a egüinha Pocotó dure muito tempo, empacada nas rádios. É a nossa garantia do adiamento do lançamento de "produtos" tão piores que só o capeta sabe. Pó-có-tó, po-có-tó, pó-có-tó. E a lacraia, por que não?

No mais, como diz Caetano, "como é bom saber tocar um instrumento!" E viva Cartola, Nelson Cavaquinho, Cole Porter, Luiz Gonzaga, Claudionor Cruz, Gershwin, Sinatra, Jobim, Aznavour, Edith Piaf, Beatles, Gardel, Elvis, Pixinguinha, Stones, Johnny Alf, Ataulfo, Elpídio dos Santos, Rodgers & Hammerstein, Noel, Marino Pinto, Orestes Barbosa, Ary, Braguinha, Beach Boys, Billie Holiday, Amália Rodrigues, Adoniran, Herivelto, Wilson Batista, Mário Reis, Louis Armstrong, de la Pera, Coltrane, Piazzolla, Charlie Parker, Canhoto da Paraíba, o "tonto" Gillespie, Manzanera, Lester Young, Mário Reis, Caymmi, Sílvio Caldas, Waldir Azevedo, Ângela Maria (a maior de todas), Jacob do Bandolim, Baden, Elis, Art Tatum, Luperce Miranda, Vinícius, Sarah, Ella, Ismael Silva...

E viva Célia Campelo Gomes Chacon (1942-2003), luar tão cândido.

(*) Engenheiro, professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora

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